2060 - Bom dia, sou o Manuel.

(Atenção: quero deixar claro que todas as situações e os nomes aqui representados são fictícios)


Braga, 29 de junho de 2060. Querido diário, hoje faço 70 anos! Como é bom reabrir-te depois de todos estes anos! Estás cheio de pó, estavas escondido naquela caixa que já não abria há anos! De toda a maneira, hoje ninguém usa diários. Mas existem sempre aqueles "malucos" como eu, que não se importam de recordar os velhos tempos, onde escrever à mão ainda não era considerado "esquisito".

Tantas coisas aconteceram, querido diário. Festejo hoje o meu septuagésimo aniversário. Mas chiu, tudo caladinho, se a Fernanda me houve, ainda me dá nas orelhas, ainda me vem com aquela história de ser errado festejar aniversários. Mas sabes, se for na brincadeira, acho que não tem mal nenhum. Sinceramente, a sociedade das testemunhas de Jeová ainda hoje bate na tecla de não podermos festejar aniversários, por causa daqueles dois na bíblia que correram mal. Enfim, eu aceito, mas sinceramente, não concordo.

As testemunhas de Jeová estão bem diferentes, sabes? Por exemplo, já não se fala muito no fim. Sim, porque nos anos 2030, quando as primeiras gerações de testemunhas de Jeová começaram a morrer, muito se falou do porque Deus não atuar, visto que o fim estaria iminente há décadas. Muita gente deixou a religião, e muita gente que ficou só ficou por causa da família, filhos e amigos. Muitos viraram inativos. Aliás lembro-me muito bem de um congresso em Valongo em 2043 (Sim, já não fazemos os congressos no Europarque, averiguou-se muito caro para uma assistência que ia declinando pouco a pouco, e com os escândalos de pedofilia e de formatação mental em redor do mundo, e as contribuições a decrescerem, eles tinham de arranjar maneira de poupar algum) em que o tema principal era "Cuidado com a morte espiritual", em que se advertia os crentes para não adormecer na fé, e que precisariam continuar a pregar porque quando Jeová viesse com o seu carro celestial, ele pudesse poupar aquele que depositariam fé não só nele mas também na sua organização terrestre, a Torre de Vigia.

Obviamente, com a geração de jovens e homens maduros ativos naquela altura, portanto entre os seus 20 e 50 anos, que já vêem a organização de outra forma, de uma forma geral, aquilo foram palavras ditas para o vento. A pregação continua, querido diário, mas com outro ímpeto. A média de horas desceu bastante, mantendo-se nas 5 horas em Portugal, segundo informações de um contato meu no betel de Espanha.

Já agora, o nosso betel em Alcabideche fechou há alguns anos. O de Espanha fechou e reabriu noutro sítio, um andar num prédio de escritório em Madrid. Chega e sobre para se ocupar de três países: Portugal, Espanha e Andorra.

O número de publicadores, querido diário, também decresceu. Somo neste momento cerca de 30 000 publicadores em Portugal, Espanha tem cerca de 90 000 e Andorra pouco mais de 40. Foi a partir dos anos 2020 que a estagnação que existia na maioria dos países da Europa se tornou um decréscimo. Com poucos jovens dispostos a lutar por uma organização que muda os seus ensinos quase que mensalmente, e com anciãos e servos idosos que aos poucos, vão morrendo, a organização, no nosso país, não teve outra solução do que mandar vir missionários de África, mais precisamente de Angola, Cabo Verde e Moçambique para Portugal.

Eu até achei bem. Mas, infelizmente, ao invés de ajudar, esses irmãos só se focavam nas horas de pregação. Tudo teria de ser feito para que mais pessoas fossem batizadas. Mas nada feito. Quando era ancião numa das duas congregações de Braga (fecharam as outras todas), posso te dizer que passamos cerca de 10 anos sem ninguém batizado na nossa congregação.

Quando sai de lá, éramos cerca de 90 publicadores. Uma congregação idosa, como a cidade de Braga e Portugal (aliás, costuma-se dizer que os jovens de Braga são os seus estudantes universitários!) na brincadeira...

Foi na década de 2020, quando tinha os meus 30 anos, que decidi, juntamente com a minha mulher e o meu filho pequenino, sair de Braga, deixar o meu emprego numa fábrica e ir servir para o Sabugal, pois a congregação de lá precisava de ajuda. A adaptação foi muito difícil. Falta de emprego, uma congregação muito idosa, onde o desenvolvimento pessoal do Lucas fora bastante impedido devido às condições daquele sítio. Estive lá cerca de 25 anos. Quando o Lucas tinha 19 anos, ele apaixonou-se por uma colega de universidade, em Viseu. Sabes, fui bastante criticado por tê-lo permitido ir estudar para longe, mas ele sempre disse que não queria um trabalho a part-time para ser pioneiro para pregar falsidades e um modo de vida que está obsoleto para qualquer jovem hoje.

A congregação também não ajudou. Sabes querido diário, eram pessoas já bastante idosas, reformadas na maioria, onde o meu filho não tinha outros jovens para brincar e para fazer amigos. Lembro-me da irmã Marta, única jovem da congregação além dele, que se apaixonou por ele. todos nós na congregação pensamos que iriamos ter ali o casal que seguraria uma congregação que estava prestes a se tornar um grupo, porque sem entradas de mais pessoas e a morte de um publicador por ano quase, a congregação do Sabugal não deveria aguentar muito mais tempo. Mas como a jovem queria ser pioneira e o meu filho queria construir uma vida, as coisas não deram certo.

Muito fizemos nós. Eu fui pioneiro regular durante os meus 25 anos em que lá vivia. como nos sustentávamos? Bem, eu decidi arranjar um part-time numa pastelaria e numa empresa de construção. A minha esposa cuidava de uma senhora idosa, também em part-time, para conseguir mais algum dinheiro. Mesmo assim, viviamos em dificuldades. É certo que nunca passamos fome, isso nunca... graças a Deus que alguns irmãos tinham pena de nós, com um filho para criar e a estudar e nos davam sempre umas alfaces, um frango, ovos... Infelizmente todos eles faleceram, querido diário. Sinto saudades deles.


O Lucas com o tempo foi desassociado. Foi uma grande tristeza para nós e para a congregação. Com o tempo, voltei a Braga, pois a congregação fechou (assim como a maioria das congregações do interior) e tornaram-se, em alguns casos, grupos, onde a maioria dos irmão assiste em direto, em casa, à reunião semanal por vídeo. Esqueci-me de te dizer, uma reunião foi cortada, na década de 2040, para se tornar numa única onde se insiste cada vez mais em pregar.


A vida passou, e hoje, estou a viver com a minha esposa, Fernanda, em Braga. Vivemos numa casa cedida pela autarquia para casais em dificuldades. Ainda não tenho direito à reforma, pois nunca descontei no tempo em que trabalhava em part-time no Sabugal. A minha esposa descontou, mas além de ser pouco, ainda não perfez os anos suficientes para pedir a reforma.

Graças a Deus, o nosso filho nos manda dinheiro de vez em quando, para sobrevivermos. Ajuda da congregação? Sim, de vez em quando alguns irmãos nos ajudam. Mas os muitos idosos que estão mal têm para os medicamentos e para os gastos do dia-a-dia! E se amanhã apanhar alguma doença, quem me irá ajudar querido diário? Os dois casais que ainda permanecem na congregação jovens são missionários de Angola que preferem
gastar mais e mais tempo na pregação do que em ajudar os seus irmãos.

Mas pregar mais para que? Nós decrescemos ao invés de crescer? No ano passado foram apenas 300 os batizados! Onde isto irá parar?

Um bom dia para ti, querido diário, até à próxima.

esperandosentado escreveu: Onde isto irá parar?

Um bom dia para ti, querido diário, até à próxima.

Onde isto irá parar? Assim vai continuar em 2060 e talvez depois... uns entram, outros saem, uns morrem, outros nascem... mas "eles" estagnaram no tempo...

Eu tive esse flash há uns meses atrás, quando alguém me deu um vídeo da semana do servo de circuito na minha ex-congregação. As experiência de saída do corpo e de quase morte, devem ser parecidas. Qualquer semelhança com a minha vida há 20 anos atrás é pura coincidência... Era 2014 ou 1990?
Ah não, espera... eu é que já não estou lá e a irmã MariaX, sempre tão querida... também não... morreu há uns anos, era idosa e não podia durar para sempre...    ... e agora a internet já não é muito má    , até têm um site e levam tablets para a pregação.

esperandosentado, gostei muito da reflexão. Os diários são bons companheiros.

Muito a calhar este texto    E muito bem feito.
Tal e qual irá ser a organização da torre de vigia (aliás já está a sê-lo).  

A única diferença é que não daria tanto tempo para isso acontecer. 2060 acho muito. Penso que irá ser bem antes, porque a internet e a informação a ela associada evoluem a passos largos a cada dia que passa.
Aliás os jovens hoje em dia não querem saber de religião para nada, por isso

Muito Bom. Excelente texto.
Por isso levas um like.

Bom texto

muito bom detalhes deliciosos como esse de missionários angolanos. e méddia de 3h horas de pregação? delicioso, e qual o conteúdo da mesma? o fim está próximo?

Excelente texto de ficção mas talvez bem antes de 2060 se assista ao trambolhão do império financeiro Watchtower bem à
semelhança do Lehman Brothers ou do nosso GES / BES.